(Gazeta do Povo) – 04/08/11
Burocracia e lentidão nas obras fazem dono de imóvel bancar reajuste do preço final, inclusive no Minha Casa, Minha Vida
Imagine comprar um imóvel na planta, pagar todas as taxas necessárias, entregar toda a documentação exigida, esperar pela assinatura do financiamento imobiliário e, enquanto isso não acontece, ver o preço do imóvel subir pelo menos 5%, por um atraso que não é de sua responsabilidade. Esse é o pesadelo que alguns consumidores estão vivendo por causa de reajustes do saldo devedor pelo Índice Nacional de Custo da Construção (INCC). Essa correção consta em contrato e é de conhecimento do comprador, mas a informação muitas vezes omitida é a de que atrasos no trâmite burocrático entre construtora e agente financiador serão debitados em sua conta. E tudo isso acontece até com imóveis do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal.
O empresário Michel Oliveira do Prado comprou no ano passado um apartamento na planta no Spazio Celtic, da MRV, em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. Ele assinou o contrato de compra e venda com a construtora em dezembro do ano passado, com a promessa de que assinaria o financiamento imobiliário com a Caixa em quatro meses. O apartamento, de dois quartos, foi vendido a ele por R$ 101.021. De acordo com a avaliação de crédito feita pela construtora, Prado teria condições de financiar R$ 90.235 e a diferença seria paga em 22 parcelas mensais de R$ 490 – entretanto, devido à correção pelo INCC, hoje a parcela já chega a R$ 520.
O martírio do empresário começou quando o prazo prometido acabou e ele não foi chamado pela Caixa para assinar o financiamento. Sete meses após a compra, ainda não há previsão de contratar o financiamento. Além da dor de cabeça, Prado viu o saldo devedor aumentar em R$ 6.037: o valor inicial que o empresário vai financiar passou para R$ 96.272, por causa da correção pelo INCC. A diferença, que ainda não parou de crescer, corresponde a quase 6% do preço do imóvel. “Consta em contrato esse reajuste, mas em nenhum momento foi deixado claro pelo vendedor que o valor previsto no contrato seria maior. O pior é saber que entreguei toda a minha documentação em dia, paguei R$ 500 para o despachante da empresa fazer a análise, e, por razões que fogem da minha responsabilidade eu ainda não assinei com o banco”, afirma. “Não sei se na hora de assinar com a Caixa eu vou conseguir cobrir todo esse reajuste”, salienta.
A laboratorista Sabrine Nascimento da Silva e seu noivo, Lucas Banzato, vivem a mesma situação. Eles também compraram um apartamento no Spazio Celtic com a promessa de assinatura com a Caixa em no máximo quatro meses após o contrato de compra e venda, em novembro de 2010. Eles pretendem se casar quando o apartamento ficar pronto e, para realizar esse sonho, investiram R$ 100.180 – desse total, serão financiados R$ 88.259. Até agora, viram o saldo devedor aumentar R$ 5.905. “Eu tenho medo de não conseguir pegar um financiamento que cubra esse aumento. Segundo a MRV, com os nossos documentos conseguimos um financiamento de R$ 88.259. Se o valor que será financiado não aumentar, não sei o que vamos fazer. O que não acho justo é ter de pagar a diferença por um atraso que eu não provoquei”, desabafa Sabrine.
Explicações: MRV alega nova exigência de documento
Tanto Michel Prado quanto Sabrine Silva e Lucas Banzato procuraram a MRV para cobrar explicações sobre o atraso. A construtora informou a eles que a demora ocorreu por trâmites burocráticos da Caixa. Entretanto, segundo a assessoria de imprensa da Caixa, os consumidores ainda não foram chamados para realizar a assinatura do contrato de financiamento porque faltava à construtora entregar dois documentos necessários para dar prosseguimento ao processo. A assessoria informou ainda que 100% da documentação sobre o empreendimento precisa estar em poder do banco para que os compradores assinem o financiamento. O banco ressalta também que, no modelo de crédito associativo, no qual se enquadra o empreendimento, a Caixa exige como condição para a assinatura do contrato de financiamento que pelo menos 20% das unidades sejam comercializadas, quando o recurso que vai financiar a obra é oriundo do FGTS – caso do programa Minha Casa, Minha Vida. Quando o dinheiro vem da poupança, a exigência é de 30%.
A assessoria de imprensa da MRV informou, por meio de nota, que todos os documentos tinham sido apresentados à Caixa, mas admitiu que, após a avaliação, o banco apontou a necessidade de obter mais um documento. Segundo a construtora, toda a documentação foi protocolada na prefeitura, e a MRV aguarda a liberação nas próximas semanas para entrega à Caixa. “O processo de assinatura dos contratos de financiamento no Spazio Celtic terá início assim que ocorrer a liberação por parte da Caixa”, afirmou a empresa, em nota.
Apesar de reconhecer que houve a necessidade de entregar novos documentos ao banco, a MRV informou que o saldo devedor dos compradores continuará a ser reajustado, por estar previsto no contrato de promessa de compra e venda, e que os compradores terão de pagar a conta. “O saldo devedor será corrigido por este índice até que ocorra a assinatura junto ao agente financeiro e a quitação total do contrato”, completa a nota.
Quem causou o atraso paga por ele, diz Procon
Os órgãos de defesa do consumidor ressaltam que, mesmo a empresa afirmando que o reajuste está previsto em contrato, o consumidor não pode ser onerado sem ter responsabilidade sobre eventuais atrasos. “Quem causou o atraso precisa se responsabilizar por ele. Se a empresa não apresentou de maneira correta a documentação ao agente financiador e por essa razão houve demora na assinatura do financiamento imobiliário, ela vai ter de arcar com esse custo”, explica a coordenadora do Procon-PR, Claudia Silvano. Ela informa ainda que o consumidor pode fazer a reclamação no Procon e pleitear o pagamento apenas do valor contratado. “Quando o consumidor não tem culpa pelo atraso, pode questionar, inclusive na Justiça, a reposição do valor”, diz a supervisora da área de assuntos financeiros e habitação da Fundação Procon-SP, Renata Reis.
O consultor de finanças pessoais Altemir Farinhas dá uma dica para quem pensa em comprar um imóvel: é bom ter entre 5% e 10% do valor total como reserva. “Quando se assina o contrato há toda uma documentação que exige uma grande quantia. Além disso, há modalidades em que é necessário pagar algumas parcelas maiores no decorrer da obra, que podem pegar de surpresa quem não se planejar”, ressalta.
Enquanto chave não chega, casal gasta com juros
Outro tipo de atraso frequente acontece no prazo de entrega das chaves ao comprador. A técnica previdenciária Luciana de Oliveira Félix Borges e seu marido, Thiago Raulino Borges, também compraram um apartamento da MRV na planta, em 2009, no bairro Portão, em Curitiba. O contrato previa que o apartamento seria entregue em junho de 2010.
Com essa informação em mãos, eles marcaram o casamento para outubro daquele ano, já se precavendo de uma eventual demora. Luciana e Thiago se casaram e receberam os presentes, incluindo eletrodomésticos. Mas, na hora da mudança, o caminho foi outro: eles se mudaram para a casa dos pais de Thiago – já que o apartamento ainda não havia ficado pronto – e continuam lá até hoje. “O contrato dizia que tinha um prazo máximo de seis meses após o previsto em contrato para eles entregarem as chaves para a gente, mas até agora nada. Fizeram uma nova promessa, de que até 31 de julho o apartamento seria entregue, mas isso não aconteceu. É muito frustrante fazer planos e ter pela frente todos esses transtornos, ver todos os dias os presentes de casamento que ganhamos encaixotados. Não temos uma vida de casados, mas de namorados”, lamenta Luciana.
Além das incertezas, o casal tem sentido no bolso as implicações do atraso. A técnica previdenciária calcula que eles já tiveram de pagar cerca de R$ 3 mil em juros da obra para a Caixa – o valor é pago ao banco enquanto o apartamento não for 100% concluído, e não é amortizado do valor financiado. “O pior de tudo é não poder nem alugar uma casa, porque os contratos geralmente pedem o mínimo de seis meses. Mês a mês estamos vendo a data ser postergada”, reclama Luciana.
Abuso
A coordenadora do Procon-PR, Claudia Silvano, vê abuso na cláusula que prevê carência de seis meses na entrega do imóvel. “Além disso, mesmo depois da carência, há um atraso de outros oito meses. Dá para ver que eles não têm até hoje vida de casados e isso rende danos morais”, analisa Claudia. Além dos danos morais, a coordenadora do Procon-PR afirma que nesses casos é possível pedir ao órgão de defesa do consumidor ou à Justiça a entrega imediata do imóvel.
A assessoria de imprensa da MRV não explicou os atrasos na entrega da obra; limitou-se a informar, por meio de nota, que o término do Cosmopolitan está previsto para setembro e que alguns blocos já estão prontos, com as chaves entregues. Em relação ao bloco do casal, a empresa afirma que o apartamento será liberado em agosto.